A prevalência de HIV entre homossexuais no Brasil saltou assustadoramente para 18,4%: a cada cinco cidadãos gays, praticamente um está infectado.
Há alguns anos, pesquisadores vêm anunciando o “fim da Aids”, baseados nos avanços dos tratamentos desenvolvidos para a infecção pelo HIV. Estas medicações representaram, sem dúvida nenhuma, avanços incalculáveis, que vêm salvando milhares de vidas, não só das pessoas contaminadas, mas de seus possíveis parceiros sexuais, que ficam mais protegidos pela redução da transmissão. Entretanto, a afirmação sobre o fim da Aids leva pouco em consideração a complexidade da sexualidade humana, os fatores culturais e sócio-político e econômicos das diferentes sociedades onde o HIV/Aids se apresenta como epidemia.
De fato, mais recentemente, contrário ao que havia sido afirmado, a literatura internacional começou a reconhecer o crescimento de casos da infecção pelo HIV entre homens que fazem sexo com homens (HSH) em diversos países. Esta é uma das populações-chave mais desproporcionalmente afetadas pelo HIV, e a este aumento de casos, alguns pesquisadores têm chamado de “segunda onda da Aids”.
No Brasil, a estimativa da prevalência da infecção pelo HIV na população de HSH era desconhecida até 2009. A sociedade civil, representada por ONG’s que atuavam fortemente junto a esta população e ao governo, vinha tentando postergar um estudo entre a comunidade receando que os resultados pudessem aumentar o estigma e a discriminação contra eles. Por outro lado, desconhecer a real situação levava recursos de prevenção para outras áreas.
Outro fator que dificultava o estudo é que esta população não pode ser pesquisada com técnicas estatísticas aplicáveis à população geral, requerendo métodos de amostragem especiais. Em escala nacional, estes estudos têm um alto custo. Governo e ONG’s decidiram juntos realizar o estudo. Dez cidades foram escolhidas nas 5 regiões administrativas do Brasil. A participação das ONG’s voltadas para estas populações foi expressiva e democrática, com acompanhamento de todo o processo que envolve a pesquisa. O resultado foi preocupante: a prevalência da infecção pelo HIV estimada para esta população foi de 12,1%, cerca de 20 vezes maior do que a prevalência na população geral.
Recomenda-se que estes estudos sejam conduzidos periodicamente em populações-chave. Apesar do período contido entre o primeiro e o segundo estudo ser mais longo do que o recomendado, o segundo estudo ocorreu em 2016, sete anos após, agora em 12 capitais brasileiras. O resultado foi muito além do que se imaginava: a prevalência subiu para 18,4%, ou seja, 46 vezes maior do que a população geral. Como explicar este aumento? O que ocorreu que pudesse explicar esta diferença tão significativa?
O crescimento da infecção pelo HIV entre os HSH era esperado pelos pesquisadores brasileiros. Uma das razões é devido a uma intensa redução das medidas preventivas voltadas a estas populações específicas que se iniciou logo após a realização do primeiro estudo. Campanhas governamentais foram coibidas por interferência direta daquilo que foi chamado Bancada BBB, termo empregado para se referir aos parlamentares armamentistas, bancada “da Bala”; à bancada ruralista, denominada “do Boi”; e à bancada evangélica, chamada “da bíblia”.
Estas bancadas se juntaram com o objetivo de votar agendas conservadoras que incluíram a proibição de atividades preventivas voltadas às populações chaves no Brasil, entre eles os HSH, as mulheres transgêneros, as profissionais do sexo e os usuários de drogas. A articulação destas bancadas passou a representar uma enorme ameaça aos direitos das minorias no Brasil. Cartilhas preparadas por profissionais altamente qualificados e que discutiam sexualidade nas escolas ficaram estocadas nos porões do governo federal, pois sua distribuição foi proibida por esta mesma bancada.
Os jovens foram profundamente afetados, pois iniciaram suas atividades sexuais em um tempo que nem se fala mais de Aids e marcado por um enorme crescimento do preconceito e da discriminação contra estes homens. As mudanças sócio-políticas ocorridas no período, permitindo o extravasamento do ódio pelos pobres, negros e pelas minorias e a redução de políticas para diminuição da homofobia produziram um impacto no crescimento observado de cerca de 120% a 140% no relato de ter sofrido história de discriminação por estes homens, registrado entre os estudos de 2009 e 2016.
As ONG’s, instâncias mais próximas da comunidade HSH que trabalhavam com esta população e que sempre foram parceiras importantíssimas do governo no direcionamento das análises da epidemia e nas ações preventivas a serem tomadas, ficaram totalmente sem financiamento governamental, e a maioria acabou fechando suas portas. Uma enorme porta da prevenção foi fechada para esta comunidade. Como resultado de todas estas políticas, a redução do uso do preservativo tem sido observada em praticamente todas as populações, tanto entre pessoas que se identificam como heterossexuais, como entre os homossexuais. O estudo de 2016 registra um crescimento de relações sem camisinha de 24%, entre jovens.
A camisinha é uma estratégia muito importante na prevenção da transmissão da infecção, mesmo não sendo a única. Além da redução do uso do preservativo, cresceu, entre os HSH, a percepção de que eles têm pouca chance de se infectar pelo HIV. Por outro lado, decresceu o percentual entre a comunidade daqueles que nunca se testaram para o HIV.
Outro aspecto observado foi um aumento expressivo do número de parceiros sexuais e da busca de parceiros, muitas vezes anônimos, através do uso de novas tecnologias como apps tipo Grindr, Hornet, Tinder e WhatsApp. Estudos mostram que estes usuários relatam altas taxas de parceria sexual e relações anais desprotegidas. E a maioria daqueles que usam estes aplicativos acham que estão sob menor risco de se infectar pelo HIV.
Observou-se, ainda, uma espécie de “banalização” da Aids, uma doença hoje crônica, mas ainda sem cura, e cujos tratamentos podem trazer inúmeros efeitos colaterais. Jovens afirmaram na pesquisa de 2016 que “a Aids não assusta mais”. Como dito anteriormente, o tratamento da Aids foi um enorme avanço clínico, epidemiológico e político. Soma-se ao tratamento, estratégias preventivas importantes como PEP, uma medicação tomada após um evento de risco com alguém que pode estar contaminado, ou a PrEP, que é uma forma de pessoas que não têm HIV, mas que correm um risco considerável de adquiri-lo, evitar a infecção pelo HIV, tomando uma pílula que contém dois medicamentos (tenofovir e emtricitabina) que são usados em combinação com outros medicamentos para tratar o HIV. Enquanto países desenvolvidos já usam a PrEP há alguns anos, no Brasil, só foi implementada pelo governo no final de 2017.
Entretanto, o uso dos medicamentos não deve passar a ser uma resposta biomédica que venha a substituir ou reduzir as respostas sociais e políticas. A sexualidade humana é algo muito mais complexo, para se acreditar que o êxito do controle da epidemia possa ser simplesmente fruto apenas da disponibilidade de medicações. Existem diferentes estratégias de prevenção e tratamento precoce que fazem parte de um complexo de medidas preventivas disponíveis e que esta comunidade precisa ter acesso.
A própria comunidade precisa conhecer o que está acontecendo com ela para criar e implementar aquelas estratégias que mais lhe sejam apropriadas para redução da infecção. Pouco mais de 50% da população ao redor do mundo que precisa tomar a medicação para o HIV está, de fato, tendo acesso. Entretanto, medidas neoliberais estão cortando direitos básicos da população, como emprego, saúde, alimento de qualidade.
É necessário redirecionar os esforços para o enfrentamento da epidemia nas populações mais expostas ao risco de infecção, articulando-as com ações para a população geral. É necessário recuperar princípios essenciais, como reconhecimento do problema e mobilização da sociedade em busca de soluções, que neste caso não são simples, mas são factíveis. Infelizmente, esta não parece, nem de perto, ser a opção do governo que hora conduz o país.
Editado a partir da entrevista da pesquisadora Ligia Kerr, coordenadora da pesquisa que entrevistou 4.176 homens de 11 capitais e Brasília. Site da Abrasco: https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/opiniao/segunda-onda-da-aids-no-brasil/34641/
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